Tênis de queixa

Quando foi que aprendemos a consolar minimizando a queixa dos outros? Os pelos menos e suas aplicações


Eu reclamo mais do que gostaria e deveria. Talvez seja pelo hábito de tentar me fazer perceber o mundo, e entendê-lo – ao menos sob minha ótica – em uma tentativa de querer ajustá-lo, como se eu pudesse. Mas não me entenda errado, eu não sou ranzinza, rabugento ou controlador. Eu faço quase que por esporte.

Reclamar. Re-clamar, é quem clama de novo. E clamar tem, entre seus significados, o de dizer em alta voz. Talvez seja isso: eu digo em voz alta aquilo que eu penso.

Pois bem.

Ultimamente tenho reparado que muita gente tem reclamado também. Sejam bem vindos ao time.

E, nestas reclamadas, parece ter sempre ao lado alguém que funcione como um comentarista, um ponderador sobre o que se reclama. Sua causa da reclamação tem que ser ruim o suficiente, no sentido de gravidade,  para que não seja questionada:
– Meu vizinho faz barulho demais…

-Pelo menos você tem uma casa.

-Meu trabalho anda muito cansativo…

-Pelo menos você tem um emprego.

 -Tenho reclamado demais…

-Pelo menos você tem do que reclamar.

Talvez seja mesmo um esporte, como eu disse mais cedo, um tênis de queixa, se você me permite. Eu jogo um problema daqui, você rebate daí, e o objetivo parece ser esse, deixar o problema no ar, uma batata quente da qual nem eu nem você queremos ter na hora que o tempo acabar. Como em um lugar comum de um elevador, o dizer em alta voz quase se confunde com o som ambiente e, quando percebemos, a porta se abriu e o assunto se desfez no ar.

Quando minha filha Helena se foi, depois de poucas horas neste mundo, tive de lidar com uma série de protocolos até chegar no funeral. Lá, estavam muitas pessoas queridas que me ajudaram a passar pelo pior momento da minha vida de uma maneira mais confortável. Dentre as inúmeras reticências que a gente ouve, reticências de consolo, eu me lembro de ter ouvido algumas que poderiam ser consideradas impróprias, se não houvesse nelas uma intenção legítima. Coisas como “pelo menos vocês são jovens, poderão ter outros”, “pelo menos ela se foi cedo, vocês não tiveram tempo de se apegar”, “pelo menos ela não sofreu muito na UTI” e “pelo menos a Day está bem”.

De novo, eu entendo que são expressões de uma legítima tentativa de amparo, mas são  carregadas de uma minimização de algo significativo, que é a perda de alguém importante. A existência de cenários piores dos que eu vivi não minimiza minha dor até hoje, muito menos naquele momento. 

Dizer a um filho ou neto que seu pai/avô morreu bem velhinho, mas “pelo menos você teve a vida toda com ele” não minimiza o fato de que ele não o encontrará mais com vida neste plano. Ali, a tristeza existe pela despedida – ou falta dela, pelos momentos juntos, a saudade que fica, o medo de se esquecer do cheiro, da voz, do rosto, e todas essas coisas que nos assustam em nossa única certeza de vida. Apesar de muitos pelo menos serem seguidos de verdades, talvez haja momentos e formas melhores de se apresentá-las.

Depois que o Leonardo nasceu, em setembro de 2020, Day e eu passamos a lidar com a rotina de pais de primeira viagem que, como você pode imaginar, se preocupam com muita coisa, principalmente depois do que experimentamos com nossa primeira filha. Quando dizemos em alta voz sobre essas preocupações, ou mesmo quando respondemos coisas cotidianas, como “à quantas anda o sono do bebê e o de vocês?”, muitos pelo menos espreitam as respostas que esperamos:

— Pelo menos vocês […]

Se pelo menos pudéssemos ouvir mais as pessoas, e entender o que há por trás de uma reclamação, talvez pudéssemos experimentar mais a empatia. Muitas vezes, o simples ato de ouvir, e de estar ali para ouvir, significa muito para alguém em dor. Ao menos, nos exemplos que citei sobre a partida da Helena, quase ninguém [1] ali poderia dizer algo que me despressurizasse. No entanto, saber que todas as pessoas que estavam ali vieram por mim, saber que poderia contar com todas elas, ou saber que, mesmo sem ter o que dizer a mim elas se dispuseram a chorar comigo, a me acompanhar em um dia tão amargo, foi o suficiente para que eu me sentisse amparado.

É claro que lá, esses pelo menos que citei também me serviram de colchão. Na verdade, de contenção, porque sentia que, se quisesse cair, todos ali – e os demais que não foram – me impediriam. Mas hoje, pensando sobre essa locução adverbial tão usada, o pelo menos, se melhor empregada, alcançaria melhor a sua intenção.

[1] Neste dia, uma amiga me chamou de lado, e com muito cuidado me disse: você sabia que os filhos escolhem os pais? Essa frase é uma tatuagem na minha memória, e me serve de consolo para os dias em que penso que, pelo menos, fui escolhido por aquela alma que decidiu aceitar uma missão de vir aqui e me ensinar para sempre. Esse é um dos melhores pelo menos que eu terei em toda a minha vida. É um consolo que amplia o que eu sinto, não minimiza. Há uma linha tênue em nos lembrar do que há de bom sem que haja a necessidade de relativizar uma queixa. Algo sutil, mas tem o poder de transformar um simples comentário em uma tatuagem de alma.


“Perceber aquilo que se tem de bom no viver é um dom daqui”. Marcelo Camelo em Liberdade.