Cuidado com a piscina

Você já teve um sonho? E, quando lhe pergunto isso, não me refiro a um objetivo, um plano a ser conquistado, mas sim das atividades mentais ligadas à uma série de ocorrências que se sucedem durante a fase de sono REM.

Sim, você sonha. Todos os mamíferos sonham. Em média, 4 a 6 sonhos por noite. A diferença é que muitos não conseguem se lembrar de seus sonhos. Na contramão disto, situações traumáticas podem fazer você sonhar ainda mais com o ocorrido.

Eu tenho um sonho recorrente. E esta é a história de como me tornei um submarino.

No final dos anos 80 eu tinha três anos, meus quatro avós e todos os meus tios vivos, doze tios e tias por parte de mãe, e cinco por parte de pai. Quase que todos por parte de mãe moravam em Porto Velho na época. Aos domingos, nos reuníamos em um sítio da família.

Mal consigo me lembrar dos domingos em que não fui ao sítio. Parte das minhas lembranças de criança está ligada aos jogos no campinho de futebol e na quadra de areia, ou quando eu não conseguia me concentrar na apostila da prova do dia seguinte, enquanto me embalava em uma das redes no chapéu de palha, observando os primos e amigos brincando na piscina com boias infláveis e pulando do trampolim de madeira, na parte mais baixa do sítio.

A piscina: o oceano

O Igarapé do Garças tangencia o sítio de nossa família. O pequeno rio é desviado para um tanque de alvenaria com fundo em areia, de cerca de 25 x 20 m, e sai na porção mais baixa deste tanque, tornando este tanque uma piscina de água natural com circulação de água corrente com cor de Coca-Cola. Era quase impossível ver 3 palmos abaixo da superfície da água. Uma piscina de Coca-Cola para um monte de crianças.

A importância de se saber sobre densidade

Como lhes dizia, no final dos anos 80 eu tinha três anos e ia muito ao sítio. Meus pais me vestiam com uma sunga e um colete salva-vidas, e aquele era meu traje ao longo de quase todos os meus mais antigos domingos lá. Em um desses, uma prima torta me pediu o colete emprestado e eu atendi. Sem entender a relação colete x flutuação, continuei brincando com meu prato de plástico na piscina. Primeiro, o prato foi para a piscina, depois eu. O prato flutuava sobre a superfície da água, por que não eu? Arquimedes explicaria.

Não se sabe ao certo a duração dos fatos a seguir, mas imagino que tenha sido praticamente em seguida, ou em partes simultâneas. À medida em que eu afundava, minha mãe dava por falta de mim. Primeiro, um olhar panorâmico ao longo da propriedade.  Nada. Já com certa mobilização, múltiplos olhares para a parte mais baixa da chácara: a piscina. O prato. O colete. O Matheus, não. Sinapses rapidamente ligam os pontos. Dezenas de pessoas começam a procura sob a água cor de Coca-Cola. Interroga-se a prima torta. “Ele tava aqui”. BPMs, tic tacs. Corre. Mergulha. Um dos meus tios pulou na parte mais funda da  piscina e, ao invés de pisar na areia, pisou em mim. Eu já começava a flutuar, um dos processos finais do afogamento. Me tiraram da piscina cianótico e desmaiado. Mais uma vez, não se sabe ao certo a duração dos fatos a seguir.

Balões de hélio e oxigênio

Me jogaram na traseira de um carro que flutuava como um balão sobre a estrada vicinal de cascalho que dá acesso ao sítio. Um tio dirigia sabendo a relatividade de cada segundo, e um pai, no banco de trás, reanimava instintivamente seu filho: soprava-lhe ar e sugava-lhe água. Virava-lhe a cabeça e, lentamente, vazava. Estava funcionando. Repetia.

Ao longo do caminho um revés: um suspiro e uma parada respiratória. Fôlego. A vida ali era mesmo um sopro.

Espaço e tempo

Chega a ser praticamente injusto falar para uma família que a ausência de oxigênio pode transformar uma criança em uma planta. Logo elas, responsáveis por nosso oxigênio. Ironia da vida.

Imagino que, naquele momento, a situação mais confortável era a minha. Eu preferiria ser eu a ser o médico que dá uma notícia dessas à uma família, bem como continuaria sendo eu a ser minha família. Ali, ambos experimentavam os efeitos da inércia: um corpo em movimento tende a estar em movimento. Eu tinha 3 anos. Eu ainda estava acelerando na vida.

Existe uma lacuna nesta narrativa de várias horas, período este que estive desacordado. Não sei muito a respeito. Ninguém muito sabe sobre. Imagino que seja uma sensação de prolongação da conversa entre o médico e meus pais, como se aquele momento tivesse sido esticado por horas, uma notícia longa demais a ser dada em segundos.

O cenário agora é o quarto do hospital na segunda-feira pela manhã. A história diz que meus olhos se abriram e percorreram todo o cômodo, cada detalhe. Os familiares, atônitos, não se arriscaram a quebrar o silêncio. Holofotes em mim. E, então, a seguinte frase: porra pai, cadê meu submarino?

Por um fio

No final dos anos 80 eu tinha 3 anos e muitos brinquedos. A Estrela era a detentora de grande parte deste universo. O Sonar era um submarino a pilha, preto, com direcionadores verticais e horizontais vermelhos, que obedeciam a um controle remoto de dois botões, ligados ao submarino por um fio.

Eu não aceitaria arriscar minha vida por um prato qualquer de plástico. Teria que ser algo com mais valor para mim. Um plástico mais atraente. Esta é a única explicação plausível que tenho sobre como meu submarino de brinquedo foi parar na narrativa.

De volta ao quarto, em meio a todos aqueles sentimentos que agora dividiam espaço físico com meus familiares, eu contava que, enquanto eu brincava com os peixinhos no fundo da piscina, chamava por meu pai e minha mãe para me tirarem de lá. Ninguém me dava ouvidos. Minha mente converteu um momento de trauma e desespero em uma infantilização, dessas que se vê em desenhos animados. Belo trabalho, cérebro. É muito mais fácil esperar o fim brincando com peixinhos.

O boto

Já que meus pais não conseguiam ouvir meus chamados, meu primo Luis resolveu me tirar de lá. Ao menos foi o que eu disse para meus pais. Luis – vulgo Boto, era bem mais velho que eu. Tinha uns 18 anos na época. O apelido veio por causa de um tratamento de quimioterapia para leucemia. Gordo, careca, sem cílios e sobrancelhas, Boto tinha mais com o que se preocupar do que com o apelido e o bullying. A questão era que quem me tirou mesmo da piscina foi um de meus tios, não o Luis. O Luis não poderia me fazer isso. O Luis havia morrido 6 meses antes do ocorrido. Eu não sabia. Não se fala para uma criança que seu primo morreu. Kardec explicaria.

Esta é a história de como a vida se conecta de diferentes formas. De como, naquele dia, eu passei a ser um submarino, submergindo e emergindo, na piscina e no plano de vida. Esta é a história que explica a primeira tatuagem minha e do meu pai. E gosto de pensar que é a história que justifica todos ciclos que eu vivo.

Eu sonho muito

Toda semana eu visito o sítio em sonho, e sempre vejo aquela piscina. Já me acostumei com ela ali. Deixo ela me lembrar da vida tênue, do sopro. Eu sonho muito e não costumo esquecer pela manhã. E faço dela parte de metáforas que crio para continuar navegando.

Ontem eu estive lá, 28 anos depois do ocorrido, e mais de 15 anos depois de ter pisado por lá. O sítio continua quase o mesmo. A piscina agora tem uma placa: cuidado com as crianças. Típica inversão da culpa cotidiana.

Eu, submarino.