A pílula dos livros

Em meio as velocidades das mídias sociais, onde os links eram mais rápidos que as notícias e seus portais, a informação, agora, assumia um novo papel: o de desinformar. As matérias tinham títulos preguiçosos e tendenciosos, e para olhos que procuravam polêmica, eram colírios.

Há quem lesse somente as manchetes, e fizesse delas armas ao debate de ideias. Há quem confiasse no texto todo, na gramática e na fonte, questionável e, por vezes, incógnita. E, assim, o mundo propagava suas desinformações, de acordo com quem quisesse ler.

As páginas dos livros não mais eram viradas. À isto, a nova geração de leitores preferia rolá-las, e a avaliação prévia da demanda de assunto era feita pela compressão da barra de scroll e não mais pelas páginas empilhadas.

A indústria da desinformação havia convencido ao leitor que havia mais floresta que o necessário no mundo. Todavia, os livros eram um gasto de papel. Aos poucos, os livros eram destruídos. Ao invés de dar a eles uma nova chance em lugares onde seriam bem vindos, os desinformantes queimavam-os, enquanto acusavam sobre a agressão ao meio ambiente que eram necessárias para produzir aquelas pilhas de papéis.

Uma caça aos livros fora instaurada. Segundo seus inquisidores, eles eram velhos demais. Novas ideias precisavam de seu espaço no mundo. Suas páginas amarelavam com o passar do tempo e delas próprias, e isso era contra a nova política ecologicamente correta de meio ambiente. Suas estantes ocupavam muito espaço em um mundo vastamente vazio.

Havia um menino que era contrário a tudo isto. Encontrava nos livros o silêncio necessário contra a algazarra do mundo digital. Sentia, naquelas páginas, a sensação de tato das histórias a serem vividas, e fazia delas mapas para sua jornada. Alternava entre estilos literários e assuntos aleatórios, como quem distribuía caixas de conhecimento em um sótão vazio, equilibrando o peso no ambiente.

Aquilo preocupava o menino. Se o fim dos livros, aos poucos, era decretado, o que sobraria ao mundo ler?

As histórias rápidas compartilhadas em redes sociais não emocionavam mais. Eram muito curtas e feitas para quem não procurava mais literatura. Como quem prefere o trailer ao filme. E o filme ao livro.

Textos relevantes eram extensos demais para apressados. Não havia tempo suficiente. A leitura era feita entre os intervalos das notificações e, Deus, como digitam rápido hoje em dia.

O menino pensava em tudo aquilo diante de sua estante. Tantos títulos em linha de leitura. Formavam uma espécie de fila indiana, aguardando sua vez de serem lidos; outros, já lidos, esperando por uma segunda chance. Grifos, post-it e notas nos rodapés. “Eu tenho plano para vocês”, pensava. Não conseguia aceitar que a desinformação tomaria todo este patrimônio literário. Olhava para os títulos e não enxergava substitutos. Não os via como combustível para fogueiras, como no Museu Nacional. Uma fumaça literária.

Ele tinha de agir.

 

Correu seus dedos sobre as lombadas dos livros, em busca de um título em específico. Os dedos subiam e desciam, à medida em que pulavam de um livro ao outro. Se riscassem, formariam o resultado de um eletrocardiograma, e acredito que a oscilação rítmica era a mesma da pulsação do menino, ansioso com suas ideias à organizar. Um pulso de esperança.

De repente, os dedos pararam em uma lombada de couro marrom, espessa. Tamborilaram rapidamente sobre o volume. Pulso. As letras, em baixo relevo e em um dourado desbotado, descreviam o que os olhos procuravam: Ensaio Sobre a Alquimia Literária. O menino encontrou a possível solução. Ironicamente, a salvação dos livros poderia estar dentro de um deles.

O livro saiu da estante, e outros três caíram em diagonal, recobrindo seu espaço. “Estão guardando o lugar deste” pensou o menino, enquanto carregava o volume único para sua escrivaninha. O impacto do peso do livro sobre a mesa não poderia se comparar ao que o conteúdo faria.

A capa marrom recobria as páginas finas, como as de bíblia, que abrigavam milhares de palavras e centenas ideias. Na escrivaninha, parte desse conteúdo era iluminado por uma luminária de luz quente, confortável. Os olhos do menino sobrevoavam as primeiras páginas lentamente, em busca de suas respostas.

Introdução. Os olhos percorriam, apressados, as palavras. Diversas vezes, o menino teve de voltar à linha anterior, pois sua pressa era maior que seu poder de compreensão.

Capítulo 1 – A manipulação da informação: como compactar conteúdo em pílulas de conhecimento. Para qualquer leitor, aquele capítulo não poderia ser tão literal assim. O livro remetia a ideia de se dividir o conteúdo em pequenas partes. Mas o menino sequer pediu perdão para interpretar literalmente o que estava escrito. Ele estava disposto a transformar em cápsulas toda a informação que pudesse, e contava com a literatura para isto.

Lia horas a fio, incansavelmente. Avançava bravamente sobre aquela madrugada, e em tantas outras. Começara a achar naquelas páginas o conforto que não tinha em seu próprio travesseiro. Fazia pausas rápidas, como vírgulas. Estudava suas anotações, compilava-as e seguia.

Seus olhos, em ziguezague, eram corajosos e objetivos. Às vezes pareciam ter vida própria, e não obedeciam aos comandos do cérebro de se manterem aberto. Adormecia em pleno turno. De repente, enxergavam o brilho de uma chama muito grande, a fogueira dos livros. Acordava, exclamando. Era só um sonho. Então, o menino os esfregava e seguia com seu objetivo literal. Livros em pílulas, encapsulados. Só assim poderia transportá-los consigo e escondê-los da desinformação.

Terminou não só o capítulo como o livro inteiro. Tinha uma sensação boa de fim de livro, uma certa nostalgia, a dúvida entre um próximo título ou uma espécie de luto pelo que acabou. Mas, como não tinha tempo a perder, seguiu.

E, neste ritmo, leu muitos livros. Enquanto lia, imaginava quantas horas de trabalho árduo estavam ali, bem na sua frente, organizado, formatado e impresso. Sentia que podia se comunicar com o autor, como quem ouve uma história bem contada, rica em detalhes em forma de palavras. Ao longo de cada livro, a sensação de que havia encontrado alguma resposta que não sabia que procurava, pois não era aquela de tornar seus livros em cápsulas. A cada fim, um novo luto e um estímulo ao próximo.

Milhares de páginas haviam se passado desde a decisão do menino, e nenhuma delas continha sua resposta. Havia navegado entre romances e livros técnicos, contos e artigos, em todos os mares literários. Porém, parecia que ninguém estava escrevendo sobre aquele assunto. Não havia um método que pudesse transformar livros em comprimidos.

Sentia que podia narrar cada parágrafo lido. Prestara atenção em praticamente tudo. Quando percebia que havia se perdido, voltava de onde havia ancorado. Começava a achar que poderia ter escrito vários daqueles prefácios, ou faria uma revisão com sua visão frente à obra. Lembrava das histórias com um sorriso nostálgico no rosto, porque sentia que revivia a história sempre que a visitava com suas lembranças.

Foi aí que percebeu. Havia conseguido.

No dia seguinte, começou a contar para os amigos todas as histórias vividas. Contou das milhares de páginas lidas, e seus relatos eram tão minuciosos que iam desde a trama aos comentários do autor. Contava e recontava, sugeria mudanças na história, classificou seus livros favoritos e aqueles que iria ler em seguida.

Seus amigos prestavam atenção em suas narrativas quase que da mesma forma que o menino lera aqueles livros. Despertava neles, também, o interesse em lê-los, já que, segundo o menino, “toda vez que você lê um livro ele transforma a história e os personagens para sua mente”.

Seus amigos o perguntavam porque havia lido tantos livros em tão pouco tempo, mas o menino não revelava o real motivo. Achariam que ele havia fracassado em sua pesquisa, o que não era verdade. Ele poderia tentar explicar, mas nunca entenderiam.
– Eu gosto de ler – respondia – Encontro nos livros o silêncio necessário para me ouvir. Há muito barulho aqui fora. Eu prefiro lá dentro, dentro das histórias. É como se eu entrasse em uma cápsula.

A verdade que ninguém sabia, e nem ele contaria, é que, ele próprio havia se tornado a pílula que tanto procurava. Leu tanto, com tanta atenção que, agora, ele próprio levaria consigo todas as histórias e sensações do que havia lido. E, sempre que quisesse, onde estivesse, poderia experimentar mais uma vez, através de suas lembranças, o gosto daquelas páginas vividas. Suas memórias, como as folhas de seus livros, poderiam ser folheadas, quantas vezes fossem necessárias.

Ele havia comprimido seus livros em si.