Nós sobre todos

Há muito tempo eu venho ensaiando escrever sobre o que aprendi nos 45 dias que passei no Canadá, mas minha paciência criativa (leia-se: procrastinação) ainda não atingiu níveis que julgo adequados para este texto. Porém, recentemente li um artigo da Revista Superinteressante sobre o estereótipo do jeitinho brasileiro e isso confluiu com minhas conclusões anteriores ao tema. Desde então esse tema permeia minha cabeça, especialmente quando estou dirigindo, e acredito que sua extrapolação se aplique para o nosso cotidiano dentro de empresas e corporações, na convivência com pessoas que se sentem superiores às regras de coletividade. Pensando nisso, resolvi fazer do texto “O que aprendi no Canadá” uma espécie de série de textos menores, abordando os mais diversos aprendizados de quem foi para lá disposto a isto.

Regras para quem?

A primeira impressão que se tem de países como o Canadá é o nível de organização. Em todas as cidades que visitei pude constatar várias vezes que tudo fora bem pensado. Várias cidades são referências mundiais em diversos aspectos: segurança, infraestrutura, planejamento urbano, transporte coletivo, etc.

O transporte público da maior cidade canadense, Toronto, é usado como exemplo de planejamento urbano por diversos professores. Por serem mais lentos para embarque e desembarque, e em função do trânsito que enfrentam, os ônibus geralmente fazem rotas pequenas, entre estações de metrô ou pontos de streetcar, os charmosos trens de superfície vermelhos e brancos que cortam as ruas principais ruas da cidade. Esses meios se interligam à grandes estações de metrô, e de lá, com o mesmo passe, você se desloca em alta velocidade para as quatro regiões da cidade.

Mapa das rotas de metrô na cidade de Toronto

Porém, o sistema modal do TTC (Toronto’s Transit Commission, ou Comissão de Trânsito de Toronto, em tradução livre) não seria eficiente se não houvesse um senso de coletividade do povo canadense. Uma das experiências mais marcantes que tive sobre esse tema foi de quando eu entrei em um streetcar com um certo defeito. Nestes veículos, não existem cobradores ou roletas, sendo sua responsabilidade ir até o meio do veículo depositar o dinheiro, passe ou gastar seu crédito na máquina cobradora e emitir seu recibo de pagamento. Neste dia em especial, a máquina de recibos estava desligada, ou seja, se entrasse um fiscal no veículo não conseguiria saber se a pessoa pagou ou não seu transporte. Mesmo assim, sobre a máquina estavam diversos tokens, os passes de transporte deles. Todo mundo que entrava percebia que a máquina não estava funcionando e, mesmo assim, deixava sobre ela seu valor correspondente. Fiz questão de sentar perto e ver que todos faziam o mesmo.

Ao chegarmos na estação de metrô, um dos passageiros pegou sua touca e colocou todo o dinheiro e passes dentro e levou até o guichê, alertando ao funcionário sobre o problema daquele veículo. Enquanto isso, formava-se uma fila de pessoas que passariam seus cartões de passe para pagar a viagem anterior.

Na escada rolante da estação, eu puxei assunto com esse senhor da touca, sobre sua atitude louvável aos meus olhos. Ele me disse que não poderia ter feito diferente, tanto no pagamento no streetcar quanto em levar os passes para o guichê da estação. E que, mesmo que o transporte coletivo deles não fosse tão eficiente como antigamente, era dever dele e de todos os usuários pagarem pelos custos do uso para que continue funcionando e melhorando.

Funcionando e melhorando. Para todos. Você percebe essa regra rapidamente ao pisar no país da maple leaf. Tenho certeza que diversos cidadãos de outros países se comportariam da mesma forma, incluindo nós, brasileiros, mas o que quero retirar dessa situação e de todas as outras que pude perceber isto é a de que lá ninguém se beneficia de algo que os outros não possam se beneficiar ao mesmo tempo. E de que, da mesma forma em que o brasileiro foi vestido com a camiseta do jeitinho, lá a camisa que se veste é a da gentileza, honestidade e educação. O sorry é usado para tudo, mesmo quando você está certo, como se as pessoas se desculpassem por terem percebido que o outro está errado.

A bandeira canadense, segundo os próprios canadenses

Hoje, quando vejo situações de pessoas se colocando em situações de benefício sobre as demais, principalmente no trânsito, por mais simples que a situação possa ser, como avançar um sinal vermelho, parar em faixa dupla e ligar o pisca-alerta, estacionar em frente à uma rampa na calçada ou parar o carro sobre a faixa de pedestres, me lembro do que aprendi sem que ninguém tivesse que parar e me ensinar de que aquilo não era permitido. Senso comum de coletividade. Regras de sociedade. E, ainda, quando vejo pessoas que se acham superiores as demais, por mais importantes que possam ser, sinto falta do comportamento canadense, feito até mesmo por pessoas que não nasceram lá, em que, não ultrapassar o limite para que possa prejudicar o outro, acaba criando um estilo de vida que valoriza a todos, inclusive a elas. Pessoas que entenderam que quando todos fazem sua parte a sociedade melhora substancialmente, ao ponto de coibirem ações erradas na rua, com muita educação, quase sempre. E, de repente, você se vê inserido em um grupo de pessoas que estão em constante evolução. Pontos pra todos.

Nesses momentos em que percebo alguém errando propositalmente, me vem a cabeça de forma involuntária aquele vídeo que faz um zoom out de onde estamos, e nossa relevância para constituição do planeta, sistema solar, galáxia, universo. Somos todos poeiras espaciais, Sr. Ser Superior da Sociedade. Sorry.