Madeira abaixo

É de uma ironia de muito mal gosto viajar ao longo do Rio Madeira, um dos rios com um dos maiores volumes d’água do mundo, e encontrar comunidades ribeirinhas sem água tratada.

Gente que pede apenas um poço para coleta, que dispensa o sistema de distribuição, porque aí seria pedir demais. Gente que não bebe mais a água fervida do seu rio, agora contaminado com mercúrio pelos garimpos ilegais.
É mesmo uma injustiça conhecer pessoas que sofrem com a constante ausência – longe de ser apenas uma falta – de energia elétrica. Logo no município com duas das maiores usinas hidrelétricas do Brasil, movidas por, vejam só, o mesmo rio que tangencia suas vilas.

Que seja. Levem as águas, mas nos deixem o sossego. Uma sociedade agredida, como esse senhor da foto de capa, surrado por coronhadas de espingarda por sequer reagir. Que mal lhe faria um senhor de 80 anos? O queria teria mais valor que a tranquilidade de um restinho da vida? Ele mesmo respondeu: um ventilador, produtos de sua mercearia e cento e poucos reais.

Sua esposa se esconde atrás das paredes de madeira da mercearia. Não sabia o que queria o rapaz que fotografava sua fachada, decorada com CDs colados nas ripas “A gente tem medo de todo mundo que não conhece”.

O olhar de Demarcação (Matheus Moura, 2019)
Mercearia Santo Expedito (Matheus Moura, 2019)

O que mais querem as famílias que escolheram a ausência da civilização urbana? Acesso à água pura. Um porto para escoar as melancias, mandiocas, açaí e outras produções que consumimos por aqui. Meios de virem enfrentar compridas filas do SUS, não maiores que as distâncias ao artigo 196 da Constituição (A saúde é direito de todos e dever do Estado […]). Querem um lugar para dispor seu lixo, para não poluírem ainda mais o Rio Madeira.

É o paradoxo da distância. Quanto mais nos afastávamos de Porto Velho, menos complexos eram os anseios. E mais distante estava a crença de que alguém faria algo por eles. O número de participantes das audiências públicas foi proporcional não a quantidade de moradores das vilas, mas sim à distância da sede.

Mas não se engane: eles sabem quem sobe o barranco para chegar às suas vilas. Olham nos olhos e agradecem por olhar por eles. Pedem bênçãos à Deus para que nos conduza de volta para casa e que nossos esforços resultem em mudanças para todos.

Interessante como a sociedade por lá funciona melhor do que aqui. O desejo é para todos e, quase nunca, para si. “Espero que meus netos possam crescer em uma realidade melhor”, me falou um senhor, em seus 50 e poucos anos, que ainda não tinha nenhum neto.