Um aviso aos desavisados

Se empreendedorismo está ligado à uma ideia inovadora, inovemos nos discursos empreendedores.


Eu sou adepto à lavagem de louça suja embaladas ao som de podcasts. Meu mais novo joguinho é chutar quantos insights terei enquanto lavo o próximo prato engordurado. Acredito que os criativos bebem de todas as fontes, das inovações de da Vinci à Jobs. Então ouço podcasts variados (mas não aleatórios) sobre quando o homem das cavernas resolveu ser nômade, por exemplo. E de quando resolveu parar de migrar de novo. E de como a geração millennial tem vivido o nomadismo digital, o abandono da ideia de se comprar a casa própria, o carro próprio, e de ter nas salas de embarque suas salas de estar, locomovendo-se pelo mundo por patinetes elétricos alugados por apps escritos em Phyton.

Ontem ouvi um podcast que se tratava de uma entrevista à um empreendedor de 18 anos de idade, que escreveu seu primeiro livro aos 16. Aos 13, foi proibido de empreender em sua escola. Comecei a me perguntar quando ele havia começado. Até que ele disse ao entrevistador que fora aos 8. Me pergunto o que aconteceu com o futebol do recreio, as pipas nas férias, corridas de bicicleta, os videogames. Aí ele disse que é um player – ufa, respiro aliviado, enquanto enxaguo alguns copos – da Bolsa de Valores.

A entrevista seguiu, o apresentador e eu – e acredito que toda a audiência – impressionados com a trajetória do rapaz. Ele inventou um app que otimizava o trabalho de sua mãe. Agora, mora nos EUA e pretende fazer faculdade lá. Explicou:

– Dei um tempo nos negócios, mas não no empreendedorismo; empreendedorismo não é um dom: é um conjunto de características que a gente desenvolve ao longo da vida, disse ele.

– Mas que características seriam essas? Questiona o apresentador.

– Criatividade, liderança, inconformismo, resolução de problemas… meus pais são de uma geração da estabilidade, que queriam ganhar um salário e viver a vida pautados nisso. Se você chega em casa falando que passou em um concurso público, todo mundo te aplaude. Se disser que quer montar uma empresa vão ter pena de você. “Você vai falir. Você vai viver no vermelho”, as pessoas dizem. Eu penso diferente. Eu não quero passar a vida atrás de uma mesa, fazendo trabalhos repetitivos, trabalhando com o que eu não gosto. Eu nasci com a alma de empreendedor.

Percebi que eu estava ariando uma travessa de forno há um bom tempo, e que a força que eu aplicava na bucha era desproporcional à necessidade da louça, mas não do discurso. A voz do entrevistado começou a murchar nos meus ouvidos, como a espuma da louça sobre a pia.

– Criatividade, liderança, inconformismo e o anseio pela resolução de problemas não são características exclusivas de empreendedores! Interromperia eu

A verdade é que se você trabalha, automaticamente você está resolvendo um problema. Algo que alguém não queria, não sabe ou não esteja disposta a fazer. Se não houvesse problemas a serem resolvidos, não haveria trabalho a ser feito.

Umas das definições menos em vogue da palavra empreender é inovar. Mas mantenhamo-la em segredo, senão alguns precisarão de um novo termo cool para suas definições próprias. Se você muda uma forma de processo do seu trabalho, de preferência para melhor, você está inovando, empreendendo uma nova ideia. Isso faz de você um inconformista com o processo antigo. Então tais definições, para mim, tem o mesmo poder da cola de um post-it.

Ansiar pela resolução de um problema pode ser definido em uma só palavra: proatividade. E isto também não é característica exclusiva de empreendedores “particulares”. Funcionários públicos, diariamente, desenvolvem métodos e dispositivos que estão resolvendo problemas que sequer ainda conhecemos.

Cabe aqui o destaque ao nosso amigo Leonardo, da vila de Vinci, que desenvolveu tecnologias usadas até hoje enquanto estava a serviço do Duque de Milão. Se trabalhava para a Coroa, isso fazia dele um funcionário público. Uma pena que não havia, naquela época, o costume de se destacar o funcionário do mês. Ele mesmo teria de pintar seu autorretrato.

De lá para cá, grandes problemas foram solucionados por pesquisadores à serviço dos governos de todo o mundo. É que a plataforma Lattes não é tão hype quanto o LinkedIn.

Quanto à liderança, devo concordar – em partes. Não é todo mundo que nasce líder. E burburinha-se nos corredores do empreendedorismo que a falta de liderança (e outra cositas mas) fez do Steve Wozniak coadjuvante no sucesso da Apple, mesmo tendo partido dele boa parte das soluções que usamos hoje. Ser líder é uma grande vantagem em um mundo mercado competitivo… para líderes. Não nos esqueçamos das partes da pirâmide de negócios: gerencial, tático/estratégico e operacional. Ser liderado não significa dizer que você é menos capaz. Significa que você tem um perfil de trabalho diferente.

Lamento em concluir com o óbvio, de que para exaltar seu trabalho você não precise menosprezar outros setores ou classes. Foquemos nos nossos negócios e deixemos de lado esse negócio de que funcionário público vive insatisfeito e só faz trabalho repetitivo. Repetitivos têm sido esses discursos fracos.